John Freelancer em "O Útilmo Julgamento de Vexar"
- Leo Ridire
- 13 de abr.
- 11 min de leitura

“Como toda sociedade já vista, a civilização galáctica humana nasceu, encontrou seu apogeu, prosperou e depois declinou, deixando diversas colônias espalhadas e segregadas por toda a Via Láctea. Este era o caso do exoplaneta Pikex, localizado nos confins da galáxia, um lugar que foi esquecido por todos fora daquele sistema estrelar e um lugar que esqueceu a todos em seus milênios de isolamento...”

O deserto de Ultum se estendia até onde os olhos podiam alcançar, suas dunas imensas parecendo ondas congeladas sob o sol branco e impiedoso. No horizonte, como um borrão escuro e maligno na imensidão dourada, erguia-se Vexar, a cidade de ferro e pedra, mais uma das cidades-estados tão comuns naquele lado do planeta.
John Freelancer avançava sem pressa, as botas mergulhando fundo na areia quente a cada passo. Seu sobretudo negro balançava com a brisa carregada de poeira. O chapéu de abas largas sombreava os óculos escuros arredondados que escondiam os olhos inexpressivos. Ele era uma silhueta solitária em meio ao vazio.
As muralhas negras de Vexar surgiam, feitas de metal oxidado e concreto rachado. Sobre os portões pesados, torres de vigia guardavam a cidade como sentinelas indiferentes e homens armados observavam qualquer aproximação.
— Motivo da visita? — Indagou um dos guardas responsável pelos portões, com a voz abafada pelo capacete selado.
— Trabalho. — Afirmou John com sua voz seca e grave como o próprio deserto.
O guarda verificou um pequeno scanner portátil. Nenhum registro. Nenhuma identificação. Nada. Um fantasma que prontamente o deixou em alerta. Após um breve silêncio desconfortável, o soldado assentiu e destravou o portão. Vexar não era exigente com quem entrava, contanto que soubessem qual era seu lugar.
Dentro das muralhas, o cheiro de suor, ferro queimado e medo era sufocante. As ruas eram labirintos apertados de prédios desmoronando, mercados decrépitos e becos onde olhos desconfiados espreitavam das sombras. Crianças descalças corriam entre pilhas de lixo, enquanto adultos maltrapilhos se encolhiam à aproximação dos soldados armados que constantemente patrulhavam a cidade.
Na Praça Central, uma enorme estátua de ferro representava a figura imponente de um ser humano careca, Xendar, o Juiz Supremo de Vexar, sua capa esvoaçante, martelo em punho e olhar severo eram um lembrete constante de quem governava ali.
John atravessou as ruas sem pressa, ignorando os olhares curiosos e assustados. Sua presença, embora discreta, era como uma pedra lançada em um lago imóvel. Ele sabia para onde ir. Todo viajante em Pikex sabia: o Bar-Freelancer era o único lugar onde negócios podiam ser feitos com alguma garantia de neutralidade. Nele, a palavra tinha peso e contratos eram sagrados.
O bar era uma construção baixa de aparência anônima. Dentro, a penumbra e o cheiro forte de álcool e óleo queimado davam o tom. O balcão era comandado por um nellung, uma criatura insectóide de carapaça cinza e olhos múltiplos negros que prontamente se firmaram no recém-chegado como se o conhecesse, afinal, essa raça alienígena contava com uma memória coletiva que lhes permitia gerir sem igual os Bar-Freelancer. John assentiu levemente e o nellung retribuiu, indicando uma mesa no canto escuro.
Uma mulher parecia deslocada naquele ambiente. Jovem, de cabelos castanhos curtos e rosto bonito, mas endurecido. Seus olhos transmitiam uma mistura de raiva e medo contido, mas isso não a impediu de sentar-se a mesa com John quase que simultaneamente, como se estivesse esperando a pessoa certa para fazer uma proposta.
Ela deslizou um chip de crédito para cima da mesa.
— Quero contratar você para derrubar Xendar — Disse a jovem sem rodeios.
John inclinou levemente a cabeça.
— Motivo?
— Ele é meu pai — Respondeu ela com amargor escorrendo pelas palavras. — Nunca me reconheceu. Nunca reconheceu ninguém. Só reconhece o poder.
John puxou o chip lentamente para si. Sem palavras e sem promessas. Apenas o gesto seco e definitivo de quem aceitava o trabalho.

Quando a noite caiu sobre Vexar, era como uma manta sufocante. As ruas eram iluminadas apenas pelas chamas pálidas dos archotes e pelas luzes amareladas das guaritas de patrulha. A cidade parecia prender a respiração, especialmente devido ao toque de recolher imposto pelo Juiz Xendar cuja pena era de açoitamento para quem fosse pego perambulando pelas ruas.
John caminhava entre os becos estreitos, longe das patrulhas, observando discretamente a vida, ou a falta dela, naquela cidade esquecida. Cada esquina escondia um pedaço da brutalidade. Soldados extorquiam pessoas dentro de suas casas com falsas acusações. Crianças desapareciam nas sombras para nunca mais serem vistas. Vozes eram silenciadas antes mesmo de serem ouvidas.
No centro da Praça, sob a estátua enferrujada de Xendar, alguns trabalhadores, os únicos autorizados a estarem ali aquela hora, montavam um palanque, pois, no dia seguinte ali aconteceriam os julgamentos públicos.
John se postou furtivamente nas sombras de uma arcada e observou silenciosamente. Os condenados seriam trazidos para passar a noite toda ao relento, pendurados por cordas que amarravam seus braços e os erguiam acima do solo. O primeiro condenado era um homem velho, arrastado por dois soldados. Seus pulsos sangravam sob as algemas apertadas, mas ninguém se importava.
— Você achou que podia disseminar rumores contra o Juiz Supremo?! – Questionou um dos soldados, socando a boca do velho antes de prender sua algema nas cordas e puxar para deixar o idoso pendurado.
O Executor chegou no local onde o palanque estava sendo montado e era um ser difícil de se ignorar, um alienígena bípede de pele azul-acinzentada e quase três metros de altura, sendo maior até mesmo que John que era considerado um humano com altura bastante acima da média, tendo seus dois metros de altura. Os ombros da criatura eram largos e dourados, cintilando no escuro enquanto seu uniforme negro mal conseguia conter sua massa muscular monstruosa.
— A primeira parte da pena será executada! — Afirmou o Executor para o temeroso velho cuja expressão facial remetia ao mais sincero pânico.
Sem direito a defesa, sem testemunhas, sem julgamento real. Apenas com a Sentença, o Executor puxou uma enorme faca e enfiou a mão dentro da boca do idoso, puxando sua língua para fora e arrancando-a com um único corte seco. A pena para difamação era aquela: ter a língua arrancada e sofrer uma morte lenta, sendo pendurado para todos verem.
John permaneceu imóvel, seu rosto inexpressivo sob o chapéu. Ele não tinha sido percebido e aquele ainda não era o seu momento de agir. O segundo preso veio logo em seguida, uma jovem sendo arrastada e acusada de "olhar de maneira desrespeitosa" para um dos soldados, mas naquele momento seu olhar estava apenas esmagado pela impotência e pelo terror.
— A primeira parte da pena será executada! — Repetiu o Executor para a jovem que implorava aos prantos que ele não fizesse nada.
O Executor manejava a violência com a frieza de um artesão, ele era monstro a serviço de um tirano e não lhe restava empatia para com ninguém. Com simples movimentos de faca ele arrancou os olhos da jovem de suas órbitas e os deixou pendurados sob o rosto para o pavor completo dela. Assim como o primeiro preso, sua pena seria sofrer até a morte pendurada naquele lugar.
John apenas deu as costas e foi embora de volta para o Bar-Freelancer, onde sua contratante chamada Kaella o aguardava sentada em uma mesa, bebendo um drink dos mais fortes. O Freelancer apenas caminhou e se sentou a mesa com ela fazendo um gesto manual para o nellung servi-lo com algo.
— Amanhã. — Disse Kaella. — Amanhã haverá um "Grande Julgamento". É nossa chance, é quando Xendar vem pessoalmente aplicar as penas.
John não respondeu. Apenas um leve aceno de cabeça, bebeu o que lhe tinha sido servido num gole só e subiu as escadarias, indo em direção a um quarto pelo qual tinha pago mais cedo. Ele prontamente se deitou na cama e cobriu o rosto com o chapéu. O sono veio devagar, acompanhado de sonhos fragmentados, lembranças de guerras distantes, rostos sem nome, sangue, poeira e o silêncio infindável da perda.

O segundo sol de Pikex nascera fraco naquela manhã, filtrado por nuvens grossas de areia suspensa. Em Vexar, a atmosfera era ainda mais pesada, carregada pelo medo e o pavor que eram tão comuns nos dias do “Grande Julgamento”.
Na Praça Central, os tambores soavam como o anúncio de mais uma manhã de terror. Barracas foram removidas. Soldados armavam cercos improvisados, isolando a população para o espetáculo.
John já estava lá desde cedo. Imóvel, misturado a população de mendigos e trabalhadores, quieto e observador.
No palanque, Xendar surgia, imponente. Sua toga negra e a capa de igual cor ondulavam em gestos teatrais. Seus olhos castanhos, fundos e cruéis, varriam a multidão com desdém absoluto e sua careca reluzia sob o parco brilho dos Sois que chegavam em sua cabeça.
Ao lado dele, como sempre, estava o Executor. A criatura parecia mais inquieta hoje, como se sentisse algo fora do lugar.
— Hoje, Vexar será mais purificada! Hoje mais uma vez teremos ordem! — Declarou Xendar com a voz que ressoava através de alto-falantes instalados nas torres.
Ele ergueu um pergaminho eletrônico e leu os nomes dos condenados.
Homens, mulheres, até um jovem de talvez dezessete anos, todos culpados de abstratos "crimes contra a segurança do Estado". O julgamento público começaria, mas não haveria advogados, acusadores e nem contraditório. Xendar era o acusador, o Juiz, o Jurado e o Juri.
A primeira vítima foi arrastada para o centro. Uma jovem mulher que ousara protestar contra o regime e pichou com o único utensílio de maquiagem que possuía uma da estátua de Xendar espalhadas pela cidade. O Conteúdo do texto escrito pela jovem apenas reclamava dos preços abusivos das taxas governamentais, mas em Vexar aquilo era um crime inafiançável e punível da forma mais horrível que alguém pudesse pensar, o que deixava a mulher cada vez mais desesperada conforme era arrastada pelos guardas em direção ao palanque.
Tão logo a jovem tinha sido amarrada no palanque com as mãos amarradas para cima e erguida de modo que não pudesse colocar os pés no chão, o Juiz Supremo a estapeou no rosto múltiplas vezes deixando exalar sua raiva descontrolada.
— Por crimes contra a segurança do belo Estado de Vexar, eu a condeno culpada! – Sentenciou Xendar com sua voz ecoando pelos autofalantes. – Sua pena será...
John moveu a mão lentamente sob seu sobretudo e agiu. Ele sacou uma das granadas de energia e a arremessou para o alto criando uma enorme explosão que instaurou uma confusão generalizada no lugar.
Os soldados tentaram conter a população, mas estavam em número muito menor e foram rapidamente suprimidos pela população que lhes derrubou no chão sendo pisoteados, perdendo suas armas e perdendo o controle da turba furiosa.
Gritos e balburdia tomaram a praça, John se misturou na multidão e avançou com firmeza em direção ao seu alvo, saltando para o palco quando viu a oportunidade aparecer. Suas duas pistolas de plasma já estavam na mão e com dois tiros, mantou uma dupla de guardas que sequer perceberam o que tinha acontecido.
— Quem ousa?! — Rugiu Xendar, recuando em choque.
O Executor saltou para a frente, rugindo em fúria como um animal descontrolado e tomado pela fúria. A praça inteira estava uma confusão de pessoas e John não esperou. Ele disparou contra o alienígena, mas o Executor era rápido demais. As balas de plasma acertaram de raspão, deixando apenas queimaduras superficiais na pele reforçada da criatura.
O monstro investiu, os quatro braços tentando agarrá-lo, mas o Freelancer rolou para o lado. Os cascalhos voaram sob suas botas e John disparou novamente, mirando nas juntas, nos olhos e nos pontos fracos, mas sem muito sucesso devido a experiência de combate de seu gigantesco adversário.
O Executor adaptava-se rapidamente, tornando seus golpes mais precisos e brutais na expectativa de eliminar o humano que ousava enfrentá-lo. A luta tornou-se uma dança mortal, onde cada passo medido, cada respiração contida poderia ser a última.
John sabia que não podia vencer apenas fugindo. Precisava de uma brecha. A multidão, antes confusa e assustada passou a assistir atônita àquela cena, pois nunca tinham visto alguém se opor ao Executor daquela maneira antes.
De repente, Kaella que também tinha ido ao “Grande Julgamento”, moveu-se rápido pela brecha criada pela multidão e atirou um pequeno dispositivo no chão que prontamente lançou uma cortina de fumaça que cegou a todos ali.
John aproveitou e saltou para trás de uma pilastra caída, recarregou as armas e então avançou novamente contra o seu oponente. A fumaça confundiu o Executor por um momento e foi o suficiente. O Freelancer fez alguns disparos com suas armas de plasma para que o brilho dos projéteis em meio a fumaça distraísse seu oponente e, com um movimento veloz, guardou as pistolas, sacou sua espada de lâmina retrátil que estava escondida sob o sobretudo e se aproximou repentinamente para estocar o Executor com uma força muito além daquela que um ser humano seria capaz de produzir.
A lâmina vibratória atuando conjuntamente com a força anormal de John permitiu que ele perfurasse a carapaça do Executor perto do tendão da perna direita, fazendo com que a criatura soltasse um urro gutural que propagou pela fumaça e fez toda a população tremer. O alienígena cambaleou e o Freelancer rolou para as costas da criatura cravando sua espada mais uma vez, porém, agora o golpe perfurava o ponto onde a espinha se encontrava com o crânio.
O Executor tombou pesadamente, fazendo o chão estremecer e todos ficaram em silêncio enquanto a fumaça se dissipava, olhando incrédulos para o palanque onde John permanecia de pé e o tão temido Executor estava caído aos seus pés, morto.
Xendar, ao se dar conta da situação, tentou escapar cambaleando para trás e tropeçando na capa negra de sua toga elegante. Não havia para onde ele pudesse correr com uma multidão raivosa abaixo do palanque e John Freelancer a poucos passos de distância ainda segurando sua espada ensanguentada.
O Juiz Supremo caiu de joelhos com os olhos arregalados, as mãos suadas agarrando as bordas da capa negra. O povo se aproximava, num misto de incredulidade e vontade de se vingar do tirano que, pela primeira vez, não tinha seu guarda-costas nem seus soldados a mão.
Os primeiros passos do povo em direção ao palanque foram tímidos, mas logo centenas de pessoas começaram a se aproximar. Os poucos soldados que restavam jogaram suas armas no chão e se renderam com as mãos na cabeça ao perceberem que, com o Executor morto e a população revoltada como uma onda inevitável, nada poderiam fazer.
John, sem tirar os olhos de Xendar, retraiu a lâmina de sua espada e a guardou lentamente no lugar de sempre sob o seu sobretudo.
— O que está esperando? — Interrogou Kaella, que acabara de subir no palanque e se aproximar com a arma roubada de um dos guardas na mão.
John deu um passo para o lado.
— Não é minha justiça. — Respondeu o Freelancer com a voz grave e calma.
Kaella encarou o pai, o homem que nunca a reconhecera, aquele que condenara milhares e que já tinha sido o orquestrador da morte de sua mãe e vários de seus amigos. Ela só sentia ódio pela pessoa a sua frente e não foi capaz de dizer nada, apenas apontou sua arma por longos momentos até finalmente abaixá-la por não ser capaz de puxar o gatilho.
— Nem minha justiça é... — Resmungou Kaella para si mesma antes de reunir toda a força que tinha e chutar o Juiz Supremo para que caísse do palanque em cima da população que o rodeava.
A multidão tomou Xendar como uma maré viva. Eles gritaram, choraram, socaram e chutaram. Não havia ordem, não havia julgamento. Apenas a fúria acumulada de décadas de humilhações. O Juiz Supremo de Vexar foi despedaçado vivo e largado ali mesmo, sob sua própria estátua enferrujada que se erguia imponente junto ao palanque.
John observou em silêncio, seu rosto escondido pela aba do chapéu e os olhos escondidos pelos óculos. Não havia expressão perceptível em sua face. Apenas a constatação inevitável de que algumas coisas precisavam acontecer.
Kaela, após alguns momentos, afastou-se, lágrimas silenciosas deslizaram por seu rosto endurecido enquanto ela deixava a arma cair no chão.
— Obrigada. — Disse ela encarando John.
Ele não fez um único movimento que pudesse indicar concordância ou discordância, na verdade, nem sequer parecia que ele tinha ouvido o agradecimento de tão imóvel que o Freelancer permaneceu.
O povo de Vexar estava livre do jugo de Xendar e um grande quebra-quebra começou a tomar a cidade, destruindo símbolos de sua tirania. Estátuas foram derrubadas, bandeiras queimadas, as prisões abertas e o caos tomou aquela cidade-estado.
John, por sua vez, nem sequer se preocupou em voltar para o Bar-Freelancer, apenas virou-se sem dizer uma palavra e caminhou pelas ruas em caos com seu paço tranquilo em meio ao grande alvoroço. Ele cruzou os portões de Vexar sem olhar para trás e ganhou as areias do deserto que sempre o aguardava.
O Freelancer seguia para frente, mas sua mente vagava em perguntas sem resposta: quem ele era, de onde viera, o que procurava. A areia engoliu seus passos. O vento soprou forte, apagando os rastros que deixava para trás, assim como ele próprio era um homem sem passado, sem raízes.

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